Bruxas de ontem, de hoje
Foto de Denis Pessoa
Crítica do espetáculo Bruxas de Salém, da Turma 94, do Curso Técnico em Teatro Senac Lapa Scipião, SP, por Simone Carleto Fontes
Ao refletir sobre produções realizadas em cursos profissionalizantes, reconhece-se que, na maior parte das vezes, um dos desafios primordiais é compatibilizar diferentes trajetórias e experiências em uma cena harmônica. Entretanto, nesse caso, a encenação cuidada com elementos diversificados que exploram criativamente os talentos reunidos, dinamiza a montagem, na qual toda equipe em cena, do início ao fim da peça, mantém o desejado estado de jogo teatral durante o desenvolvimento da obra. Destaca-se a movimentação e desenhos de cena inventivos, surpreendendo o público a cada instante. A respiração articulada coletiva e individualmente, garante o fluxo de energia pulsante durante a encenação, promovendo a sensação de vivência real da história contada. Os sentimentos e emoções expressados pelos atores e atrizes alcançam o público, que demonstra participar ativamente da narrativa, se envolvendo emocional e racionalmente na trama.
Já esse aspecto reflexivo é proporcionado pela coerência da adaptação e a organicidade com a encenação, ao utilizar recursos épicos do distanciamento pelas músicas, movimentações teatralizadas, narrações, apartes, utilização de coro, artistas que desempenham mais de um papel, trabalho com gestus, mostrando contradições das personagens, além de apresentar recursos contemporâneos, como a representação de personagens com gênero diferente do fenótipo biológico, com vistas à problematização na normatização de gênero. A própria permanência de todo o elenco em cena trata-se de um recurso teatralizado, que assume a relatividade da encenação diante da vida considerada real.
“As Bruxas de Salem” (título original: The Crucible) é uma peça teatral escrita por Arthur Miller em 1953, baseada em eventos reais ocorridos na cidade de Salem, Massachusetts, no final do século XVII, por volta de 1692. A peça é uma poderosa alegoria política que critica a “caça às bruxas” do Macartismo nos Estados Unidos. O drama histórico com traços do gênero tragédia, estreou em 1953 no circuito Broadway. No Brasil, uma das encenações históricas foi em 1960, no Teatro Maria Della Costa, pelo Pequeno Teatro de Comédia, com tradução de Brutus Pedreira e direção de Antunes Filho.
A peça gira em torno dos julgamentos das bruxas de Salem em 1692, onde um grupo de meninas é acusado de praticar feitiçaria. Para se livrarem do castigo, começam a acusar outras pessoas da comunidade, gerando uma onda de histeria coletiva. John Proctor, um fazendeiro que supostamente mantém valores éticos, é arrastado para o caos ao tentar expor a farsa. O drama culmina em sua decisão moral diante de uma sociedade corrompida pelo medo, fanatismo e manipulação. As personagens são John Proctor – fazendeiro, protagonista trágico, tem um passado de adultério com Abigail, representa o conflito moral; Elizabeth Proctor – esposa de John, acusada de bruxaria; Abigail Williams – sobrinha do reverendo Parris, ex-empregada dos Proctor, líder das meninas que fingem estar possuídas, manipula a comunidade, está apaixonada por John Proctor e quer eliminar Elizabeth; Reverendo Parris – pastor local, preocupado com sua reputação, representa o fanatismo e a hipocrisia religiosa; Reverendo Hale – especialista em bruxaria, entra em crise de consciência, representa o embate entre fé e razão; Juiz Danforth – representante do tribunal, inflexível e autoritário, simboliza o poder cego e intransigente da autoridade; Tituba - Escravizada de origem afro-caribenha, trabalha na casa de Parris, primeira acusada de feitiçaria, representa a figura racializada, marginalizada e demonizada; Mary Warren - Empregada dos Proctor, segue Abigail, representa a fragilidade diante do poder e da manipulação; Giles Corey - Velho fazendeiro corajoso e provocador; Rebecca Nurse - Idosa respeitada na comunidade, acusada de bruxaria sem provas, recusa-se a confessar e é enforcada, representa a inocência, a espiritualidade e a injustiça dos julgamentos; Martha Corey - Esposa de Giles Corey, acusada de ler livros estranhos e usar feitiçaria, vítima da paranoia generalizada; Thomas e Ann Putnam- Casal influente que incentiva as acusações, representam o uso político da religião e a manipulação da justiça; Grupo das meninas: Susanna Walcott, Mercy Lewis, Betty Parris, Ruth Putnam, Ann Putnam Jr. - jovens da comunidade que seguem Abigail e criam o “teatro” das possessões, representam o medo, a repressão dos desejos.
Os aspectos da teatralização são fundamentais como camada de significado da obra, assim como para sua ambientação nos dias atuais, que podem ser considerados com um certo empobrecimento da linguagem em face dos perigos da manipulação de informações e das fake news. Temas como colonialidade, comportamento obsessivo coletivo, justiça e injustiça, fanatismo religioso, liberdade individual e democracia, moralidade e responsabilidade, ambientam a montagem na atualidade, trazendo-a como oportunidade de alegoria sociopolítica, portanto, encenar “As Bruxas de Salem” hoje é um ato profundamente relevante, já que a peça de Arthur Miller, embora ambientada no século XVII, trata de temas que permanecem urgentes no mundo contemporâneo, especialmente no Brasil e na América Latina, mostrando como rumores, mentiras e acusações infundadas podem destruir vidas. Hoje, vemos isso em linchamentos virtuais, ataques baseados em desinformação e campanhas de ódio nas redes sociais. A peça funciona também como um alerta contra julgamentos precipitados e narrativas construídas pelo medo. O tribunal de Salem é um símbolo de autoritarismo e intolerância, no qual a fé é usada como arma. Atualmente, alguns discursos religiosos são utilizados para atacar direitos civis, de gênero e diversidade. No contexto da Guerra Fria, Miller escreveu a peça como crítica ao Macartismo, quando artistas e intelectuais foram perseguidos por supostas ligações com o comunismo. Assim, a montagem faz menção a algumas práticas ritualísticas consideradas inadequadas em alguns contextos, se considerarmos pressupostos do racismo estrutural multidimensional (de classe, gênero, cultural e de raça) conforme estudado pelo sociólogo Jessé Souza. Importante essa ênfase, ao recobrar ao teatro práticas ancestrais que o estruturam, antes que fosse compreendido como linguagem artística.
A bruxa também é arquétipo ainda atual da desobediência feminina. Figura milenar, perseguida ao longo da história (especialmente na Europa entre séculos XV e XVII) a bruxa é uma mulher que detém saberes — ligados à medicina, à religião, aos cuidados do corpo, o parto, a cura, a culinária e a alquimia. Demonizada por desafiar o patriarcado e a instituição igreja, a bruxa se tornou símbolo de resistência, insubmissão e sabedoria ancestral. Frequentemente associada ao Diabo, à natureza e ao desejo sexual, a bruxa é uma figura que concentra medo do feminino autônomo, do saber popular e da desobediência. Algumas referências nesse sentido são "Calibã e a bruxa", de Silvia Federici, que une as histórias da bruxaria e da colonização, mostrando como mulheres e povos racializados foram alvo da construção capitalista do Ocidente. De Maryse Condé, o livro "Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salem”, ressignifica a personagem, dando-lhe voz, sexualidade e consciência política. "Pele negra, máscaras brancas” de Frantz Fanon, além de autoras como Lélia Gonzalez e Grada Kilomba, nos auxiliam a pensar raça e gênero a partir da perspectiva decolonial. A personagem Tituba, em As Bruxas de Salem, tem uma importância simbólica e profunda, promovendo identificação e aspiração de coletividade. Ela é a primeira pessoa acusada de bruxaria na peça, e sua figura revela as estruturas de poder racista, colonial e patriarcal, que sustentam toda a movimentação reacionária de Salem. A presença de Tituba conforme aprofundada na montagem, permite uma leitura crítica sobre raça, gênero e subalternidade — tanto no século XVII quanto hoje. Tituba não apenas traz uma espiritualidade “outra” (com danças, cânticos e rituais afro-caribenhos), mas também simboliza os saberes não europeus, perseguidos como “bruxaria”. Sua repressão simboliza a supressão das cosmologias afro-indígenas pela colonização.
Um dos pontos mais comoventes do espetáculo, comprovando que o épico jamais nega a emoção, é o canto coletivo de “O que se cala”, de Elza Soares. Há trecho que diz “[...]Mil nações moldaram minha cara/Minha voz uso pra dizer o que se cala/Ser feliz no vão, no triz, é força que me embala/O meu país é meu lugar de fala[...]", e nesse momento, a música entoada à capela ganha contornos cênicos contundentes a convocar o público a refletir acerca do que vê. Em algumas das repetições, o elenco apenas articula a boca como se estivesse dublando a música, porém em silêncio, sem a voz, na parte “de fala”. Recurso potente, como muitos outros momentos notáveis, cujo texto crítico é incapaz de reproduzir.
Com direção e adaptação de Fábio Resende, o espetáculo Bruxas de Salém, a partir do texto original de Arthur Miller (1915-2005), possibilitou à Turma 94 do Curso Técnico em Teatro Senac Lapa Scipião, São Paulo, a vivência de uma montagem profissional, nos moldes de produção coletivo-colaborativo do teatro de grupo. Ou seja, cada elemento presente na encenação faz parte de uma construção coletiva dentro da instituição e como parte do percurso de criação na qual cada participante contribui para a concepção da obra, pensando conjuntamente sua elaboração. Uma turma se encontra em um curso em decorrência da busca formativa, e os procedimentos de criação colaborativa ensejados nas práticas dos grupos de teatro ao longo de suas histórias, reverberam como modo significativo de ensino-aprendizagem de teatro em alguns cursos dessa natureza. Para tanto, o coletivo teve, com a coordenação de Resende, o trabalho de uma equipe também tarimbada no ofício teatral. Roberta Bahia e Thiane Lavrador cuidando das poéticas vocais e corporais, Douglas Almeida e Fábio Resende responsáveis pela iluminação. O elenco foi formado pelos atores e atrizes Danniel Oliveira, Davi Rodrigues, Ester Moreno, Fernando Pires, Juliana Mauricio, Leila Moreira, Leinad, Luiz Felix, Manuella Oliver, Paola Miranda, Verenna Cortegoso, Stefany Pachecco e Yara Yuriko. Além de interpretar, narrar, cantar e performar, o grupo desenvolveu a cenografia, figurinos e também fez a produção do espetáculo. Tudo isso articulado pela coordenação técnica de Gleiziane Pinheiro e coordenação educacional de Anna Carolina Martim, sob gerência de Wilson Krete. O processo garantiu que cada pessoa tivesse seu momento de destaque, em um trabalho dignificante pelo ato de estar em cena. Ao mesmo tempo, os procedimentos adotados possibilitaram destaques de interpretação que trouxeram pontos altos à obra. Uma montagem como esta desafia os lugares comuns de abordagens maniqueístas, e apontam para a necessidade social de se compreender o compromisso da coletividade com o bem-viver humano, em harmonia com os recursos naturais. Tal prática artístico-pedagógica, cruzando literatura, história, antirracismo e elogio da diversidade é louvável. E o teatro se mostra aqui como um importante encontro a fomentar este desejável estágio no presente.
Simone Carleto Fontes é atriz, diretora e artista-pedagoga de teatro. Mestre, doutora e pós-doutora em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Unesp - SP. Professora Formadora e Conteudista do curso de Licenciatura em Teatro a Distância da Universidade Federal da Bahia - UFBA. Jurada de Teatro da APCA - Associação Paulista de Críticos de Artes.
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