Encontros de Antonios - Antonio Abujamra e Luiz Antonio Souza Campos (Luiz Campos)
Encontros de Antonios - Antonio Abujamra e Luiz Antonio Souza Campos (Luiz Campos)
Arguição à defesa de tese de doutorado de Luiz Campos, Instituto de Artes da Unesp, SP, por Simone Carleto Fontes
Retrato de Antonio Abujamra, por Bob Sousa
[...] Todos os gestos do fogo
que então possui dir-se-ia:
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua língua;
gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia,
carne de fogo, só nervos,
carne toda em carne viva.
Então, o caráter do fogo
nela também se adivinha:
mesmo gosto dos extremos,
de natureza faminta,
gosto de chegar ao fim
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim,
de atingir a própria cinza.
Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz
como ela é, nas siguiriyas,
de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,
que somente ela é capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.[...]
Estudos para uma bailadora andaluza - João Cabral de Melo Neto
Simultaneamente à pesquisa intitulada Desenvolvimento das práxis brechtianas a partir das experiências de Antônio Abujamra na década de 1960, com orientação de Alexandre Mate, Luiz Campos desenvolveu outra tese de doutorado, defendida na Universidade Presbiteriana Mackenzie, com orientação de Rosângela Patriota, intitulada Antônio Abujamra – Inquietações brechtianas na cena teatral do Brasil (2024). Nela, a investigação partiu do pressuposto de que Abujamra foi um diretor brechtiano por excelência, e analisou cinco espetáculos dirigidos por ele em diferentes décadas: Sorocaba, senhor!; Os efeitos dos raios Gama nas margaridas do campo; Morte acidental de um anarquista; A resistível ascensão de Arturo Ui; e Hamlet é negro. Propôs seguir os rastros e evidências que revelassem sua abordagem épica, comprometida com um teatro político, provocador e profundamente reflexivo.
Segundo Luiz Campos, “o duplo enfrentamento que me permitiu enxergar Abujamra por ângulos múltiplos — ora pela lente da encenação, ora pela da formação, ora pelas fraturas entre sucesso e fracasso. Essa multiplicidade de perspectivas não se anulou: friccionou-se. E creio que foi justamente dessa fricção que emergiu uma compreensão mais complexa, honesta e inquieta — como convém ao próprio Abujamra."
Dessa vez, escreve três atos para nos oferecer dados biográficos e da produção teatral de Abujamra, além de promover reflexões estéticas ao desenhar uma cartografia do percurso de formação artística de Abujamra, à luz dos pressupostos processuais práxicos brechtianos. No ato 1 Do lírico ao dramático: experiências que contribuíram para a formação estético-histórico-social de Antônio Abujamra; no ato 2 Do dramático para o épico: fadado ao fracasso, e ato 3 Do épico à luta: quando Abujamra traz Brecht para seu presente histórico.
Segundo Luiz, os atos desenham as marcas de certa "recusa em se submeter a modelos preestabelecidos e pela aposta na dúvida como método. [...] e do teatro praticado à margem das estruturas hegemônicas, afirmado como linguagem de resistência e ferramenta de enfrentamento simbólico, estético e político.” Também atravessado pelo fazer teatral envolvido no Movimento de Teatro de Grupo, na sala de aula, nos palcos periféricos, inclusive em contatos com o Movimento Sem Terra, Luiz contribui ao importante ato de reconhecer as raízes do teatro brasileiro ligadas aos teatros dos estudantes, teatros universitários, teatros populares, é buscar peças faltantes na historiografia de nosso teatro, fundamentais à compreensão e busca das identidades que reivindicamos para a transformação constante da cena e valorização dos processos criativos em continuidade.
Destaco portanto, a relevância do trabalho para elucidar parte dos aspectos da formação teatral e o debate acerca da profissionalização no teatro (p. 52). Pensando essas articulações com a criação do curso de Arte Dramática na Universidade do Rio Grande do Sul, em 1958; a participação nos festivais de teatro estudantil e em projetos de popularização do teatro, com formação de público, sendo que hoje refletimos mais acerca da formação de espectadoras, debate a ser enfrentado com mais afinco no Brasil, ao lado de Argentina, Uruguai e outros países da América Latina. Faz parte de tais preocupações um dos maiores desafios demonstrados na trajetória com o teatro épico dialético: a formação processual de atores e atrizes nesse teatro. Feito que apenas o fazer continuado e aprofundado pode garantir.
A seguir, alguns achados importantes da pesquisa de Luiz Campos:
"Analisar os espetáculos Terror e miséria no Terceiro Reich e A pena e a lei, dois marcos de sua atuação nos anos 1960, significou lidar com ausências documentais — principalmente no segundo caso, sobre o qual não há sequer registros fotográficos ou matérias jornalísticas diretas. Foi preciso recorrer a documentações secundárias, entrevistas, relatos indiretos e cruzamentos Terror e miséria reafirma Abujamra como um encenador epicamente comprometido, enquanto A pena e a lei o apresenta como alquimista entre o popular e o político, usando os expedientes do riso e da alegoria para fazer uma crítica estrutural ao sistema estrutural brasileiro." (p. 281)
"A investigação revelou como esses "fracassos" estavam muitas vezes vinculados à incompreensão e ao conservadorismo da crítica e das plateias e à instrumentalização ideológica do fazer teatral. Abujamra sabia que, ao se alinhar às estéticas populares e brechtianas, sofreria embates duros com a crítica, com parte da classe artística e com os públicos mais conservadores. Nesse ato, conseguimos revelar o quanto ele foi mal interpretado por uma crítica alinhada a valores opostos aos que ele defendia. Não se tratava apenas de avaliação estética: estava em jogo uma disputa política, um campo de forças em que o incômodo que Abujamra causava era diretamente proporcional à ousadia de suas encenações.”(p.280)
"A opção pelo teatro épico brechtiano, pela fragmentação narrativa e pelo distanciamento crítico, fez com que sua linguagem colidisse com o gosto dominante e com os interesses dos meios de crítica da época. Este ato, por isso, investiga os critérios de “sucesso” e “fracasso” atribuídos ao artista, tomando como referência as próprias declarações de Abujamra, que frequentemente dizia ter acumulado muitos fracassos e pouquíssimos sucessos.”(p.280)
"Essa reconstrução só foi possível com o generoso apoio de seu filho, Alexandre Abujamra, que compartilhou informações preciosas, inclusive registros como a caderneta de anotações pessoais de Antônio, que se revelou uma das fontes mais singulares da tese. Ao lançar luz sobre o movimento estudantil e teatral porto-alegrense dos anos 1950, também me distanciei da recorrente centralidade do eixo Rio-São Paulo. A proposta aqui não foi apenas trazer novidades, mas deslocar o olhar historiográfico, reposicionando sujeitos e contextos quase sempre deixados à margem."(p.279)
"O procedimento estético escolhido por Suassuna se alinha à noção de “teatro popular de invenção”, como ele próprio defendia, que não busca representar a “realidade” de maneira mimética, mas sim transfigurá-la poeticamente a partir dos modos de expressão do povo. A encenação, nesse sentido, não se preocupa com a verossimilhança nem com a psicologia das personagens, mas com a eficácia simbólica e comunicativa da fábula. É nesse ponto que encontramos uma afinidade com o trabalho brechtiano — embora por vias muito distintas —: ambos constroem estruturas cênicas que buscam desnaturalizar as relações sociais e instaurar um olhar crítico no público. Porém, diferentemente da dramaturgia épico-dialética, A pena e a lei não trabalha com a exposição da contradição interna da personagem, mas com a elaboração de uma intriga coletiva que denuncia os dispositivos de dominação através do exagero e da ironia. “(p.273)
Enxergo aqui algo fundante que tenho pesquisado no que denomino historiografia negada do teatro brasileiro, ao considerar as teatralidades praticadas antes do teatro ser concebido como tal. Ariano Suassuna, por exemplo, representa parte dessa busca, quando olhamos a efervescência dos imbricamentos entre o popular e o erudito, em face por exemplo do Movimento Armorial, muito inspirado no Século de Ouro Espanhol. Assim como os conceitos de popularização e formação, que Abujamra tomou contato desde o início de sua carreira, inspirando-se em Lope de Vega, bem como nas relações possíveis entre a presença dos bonecos nas rubricas e proposta de encenação de A Pena e a Lei, com a criação de Federico Garcia Lorca em seu compilado Títeres de Cachamorra.
[...] Mas o que faz duvidar
possa ser telegrafia
aquelas respostas que
suas pernas pronunciam
é que a mensagem de quem
lá do outro lado da linha
ela responde tão séria
nos passa despercebida.
Mas depois já não há dúvida:
é mesmo telegrafia:
mesmo que não se perceba
a mensagem recebida,
se vem de um ponto no fundo
do tablado ou de sua vida,
se a linguagem do diálogo
é em código ou ostensiva,
já não cabe duvidar:
deve ser telegrafia:
basta escutar a dicção
tão morse e tão desflorida,
linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em preto e branco
Ela não pisa na terra
como quem a propicia
para que lhe seja leve
quando se enterre, num dia.
Ela a trata com a dura
e muscular energia
do camponês que cavando
sabe que a terra amacia.
[...]
Voltando aos excertos da tese Desenvolvimento das práxis brechtianas a partir das experiências de Antônio Abujamra na década de 1960:
"Essa tensão entre a expectativa de uma abordagem mais stanislavskiana e a prática brechtiana de Abujamra pode revelar um conflito mais amplo no teatro brasileiro da época. Enquanto parte da crítica e do público esperava um teatro que explorasse a complexidade psicológica das personagens, Abujamra, influenciado principalmente por Brecht e Planchon buscava uma linguagem mais crítica e popular, que questionasse as estruturas sociais e políticas por meio de uma estética distanciada e, muitas vezes, cômica. A escolha de não explorar o "substrato psicológico" pode ser vista, assim, não como uma falha, mas como uma decisão estética consciente, alinhada com suas influências e com o propósito de criar um espetáculo que, mesmo leve e divertido, mantivesse um diálogo crítico com o público." (p.164)
Luiz pinça estrategicamente trecho da crítica de Sábato Magaldi para a peça O estranho casal, do dramaturgo estadunidense Neil Simon, que estreou em julho de 1967, na sala Gil Vicente, no Teatro Ruth Escobar. Destaco aqui apenas o trecho que considero principal para demonstrar o que, com boa vontade, se pode denominar como possíveis origens da falta de compreensão acerca dos pressupostos brechtianos:
“[...] Antônio Abujamra mostrou, mais uma vez, que sabe lidar com o teatro de boulevard e não incomodam a caricatura que fez das vizinhas (Ana Maria Nabuco e Liana Duval) e o Brecht de galinheiro (como diria Nelson Rodrigues) das réplicas dirigidas à plateia, hoje marca de fábrica dos encenadores brasileiros que gostam de parecer atualizados. [...]"(Magaldi, 2014, p. 42-43). (p.165)
E complemento, seguindo para o final, com algumas importantes conclusões do pesquisador Luiz Campos:
"Terror e miséria do Terceiro Reich aproxima-se diretamente da experiência estética e política do Berliner Ensemble, enquanto A pena e a lei reflete as influências do contato com Planchon e sua valorização do teatro popular e da oralidade. Essa escolha reafirma não apenas a densidade analítica do capítulo, mas sobretudo o compromisso político desta pesquisa com a descolonização estética e a ampliação dos espaços legítimos de expressão artística, em consonância com a postura crítica e transformadora que conduz a obra de Abujamra." (p. 216)
"Portanto, o encadeamento proposto por Abujamra não se limita à seleção das “melhores” ou “mais encenáveis” cenas de Brecht. Ele constrói, através da ordem dramatúrgica, uma linha de raciocínio que articula a corrosão das estruturas sociais (primeiro ato) com o colapso da linguagem e da consciência política (segundo ato). Ao fazê-lo, provoca tanto nos atores quanto no público a atravessar os episódios como quem percorre uma espiral de desumanização. A montagem, assim, se constrói como um dispositivo de análise crítica, onde a forma fragmentária não é dispersão, mas método: uma montagem que pensa e faz pensar." (p.228)
Sua dança sempre acaba
igual como começa,
tal esses livros de iguais
coberta e contra-coberta:
com a mesma posição
como que talhada em pedra:
um momento está estátua,
desafiante, à espera.
Mas se essas duas estátuas
mesma atitude observam,
aquilo que desafiam
parece coisas diversas.
A primeira das estátuas
que ela é, quando começa,
parece desafiar
alguma presença interna
que no fundo dela própria,
fluindo, informe e sem regra,
por sua vez a desafia
a ver quem é que a modela.
Ainda apenas a título de coda, até porque cabe muito mais essa reflexão ao amado amigo, guru e padrinho, o professor, pesquisador e crítico Rodrigo Morais Leite, estudioso da obra de Décio de Almeida Prado, apresento duelo de Antonio, defendido por Luiz, com o célebre Décio de Almeida Prado"
"Quanto ao espetáculo, reflete as qualidades e os defeitos habituais de Abujamra: uma certa audácia na concepção geral do espetáculo, comprometida por uma direção de ator que até agora se tem mostrado sempre deficiente. Glauce Rocha é a única que se destaca, embora sem ir tão longe quanto permite o seu talento. Os outros, em grande parte egressos da Escola de Arte Dramática, formam uma argamassa indistinta, da qual emergem, em uma ou outra cena, as interpretações de Sergio Mamberti — o mais uniforme de todos - Antonio Ghigonetto, Cecilia Carneiro, Emilio Di Biasi, Ivonete Vieira e Ricardo de Lucca. Antonio Abujamra é uma voz que já se vai incorporando em definitivo ao teatro paulista. Pelas ambições que tem, pelo repertorio que monta, é um homem de teatro com o qual se tem prazer em dialogar, ainda que seja, como é o nosso caso, para quase sempre discordar (PRADO, 1964, p. 267-269).” (p. 247-248)
"Para ele, o principal “problema” de Abujamra é sua ênfase no emocional e no poético, algo que estaria em desacordo com a racionalidade crítica do teatro épico. E é aí que as divergências se tornam reveladoras: o que Prado vê como um erro, talvez seja justamente o modo singular de Abujamra de operar o distanciamento — não por negação da emoção, mas por sua instrumentalização dialética. Como já se viu em outras fontes (incluindo os depoimentos de Mamberti e Glauce Rocha), Abujamra dirige com foco nas teses, possivelmente, mais materialistas e rompe com o psicologismo tradicional e desloca o realismo para fins críticos — mas não rejeita a fricção com a emoção. Ele a manipula, a desnaturaliza, a faz falar.” (p. 249)
Na sua dança se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.
Parece que sua dança
ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que a vestia.
Não só da vegetação
de que ela dança vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil é chita)
mas também dessa outra flora
a que seus braços dão vida,
densa floresta de gestos
a que dão vida a agonia.
Na verdade, embora tudo
aquilo que ela leva em cima,
embora, de fato, sempre,
continui nela a vesti-la,
parece que vai perdendo
a opacidade que tinha
e, como a palha que seca,
vai aos poucos entreabrindo-a.
Ou então é que essa folhagem
vai ficando impercebida:
porque terminada a dança
embora a roupa persista,
a imagem que a memória
conservará em sua vista
é a espiga, nua e espigada,
rompente e esbelta, em espiga.

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