Estradas, vias e vielas em busca da poetização da pesquisa

 Estradas, vias e vielas em busca da poetização da pesquisa


 Visão panorâmica de Carmo de Minas. Foto: Arquivo Pessoal de José Guilherme Carneiro






Arguição à defesa de mestrado de José Guilherme Carneiro: POÉTICAS DA MEMÓRIA: RELATOS, TRANSMISSÕES E TENSÕES NO TEATRO E NAS RUAS DAS CIDADES, apresentada ao Instituto de Artes da Unesp, com orientação de Alexandre Mate



Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã
(Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)



Inicio com esse trecho, pensando nas poéticas da memória como processos em busca de um modo de fazer diferenciado e dramaturgizado da pesquisa, que se completa no encontro com a pessoa leitora. Assim, percebo o trabalho de José Guilherme como uma escrita oralizada, que chega aos meus olhos-ouvidos-corpo como um convite a visualizar seus trajetos e pensamentos, que vão se tecendo junto com as narrativas que apresenta. Para mim a citação de Leda Maria Martins, na página 29, simboliza a metodologia e proposição de José Guilherme com sua dissertação. Espiralar é o que, no meu entendimento, melhor ilustra essa percepção, concepção e experiência.


[...] o tempo pode ser ontologicamente experimentado como movimentos de reversibilidade, dilatação e contenção, não linearidade, descontinuidade, contração e descontração, simultaneidade das instâncias presente, passado e futuro, como experiência ontológica e cosmológica que têm como princípio básico do corpo não o repouso, como em Aristóteles, mas, sim, o movimento. Nas temporalidades curvas, tempo e memória são imagens que se refletem (Martins, 2022, p.23).

O percurso inicia na introdução, com a apresentação da cidade Carmo de Minas: "Uma cidade pequena e suas 13.797 pessoas, na beira da Serra da Mantiqueira no Sul de Minas Gerais, Carmo de Minas, antiga Silvestre Ferraz, segundo distintas afirmações, conhecida como “terra de parte dos melhores cafés do mundo” e também como a cidade do melhor gado Girolando. Uma raça bovina brasileira mestiça, originada do cruzamento do zebuíno Gir com o europeu Holandês. É considerado por muitos a mais importante raça leiteira de clima tropical. Percebemos portanto as vocações econômicas que permanecem e que projetam as mais variadas cidades para fora delas. Evidentemente, não se considera de modo substancial as produções às margens de interesses econômicos, digamos assim, tão imediatos.

Mas foi em Goiânia que José fez sua graduação, atuou em peças e participou de grupos de teatro, entre eles Coletivo Cênico Centelha, Teatro Ludos, Corpo Cênico e Teatro Taberna. Integrou o Corpo Cênico de 2019 a 2022. O Corpo Cênico é um grupo de pesquisa vinculado à Escola do Futuro em Artes Basileu França (gerida atualmente pela Universidade Federal de Goiás - UFG), que desenvolve pesquisas teatrais, além de artes visuais, circo, música e dança. Buscando a horizontalidade dos processos, criou juntamente com João Victor Sanoli, em 2019, o Teatro Taberna.

Memória e imaginário nos conduzem pela bela escrita, como forma de conduzir-nos ao universo apresentado, e que culmina com percepções acerca dos espetáculos ((Parênteses)), do grupo Corpo Cênico, espetáculo que reúne histórias de familiares das atrizes e atores, e A Saudade Deixa Tudo Melhor do Que Foi, do grupo Teatro Taberna,  trama realizada com diários e escritos do elenco-criador, que tinha como tema o tempo, a morte, e os estados de vigília e adormecimento,

Memória, oralidade e práxis corporais na transmissão de costumes e tradições, lacunas e omissões e o papel dialético do esquecimento, abrem alas para permear as vivências teatrais e compreendermos parte do que se chama crítica genética, grosso modo, nos leva a pensar os caminhos da criação teatral que José vislumbra, assim como fica explicitada sua metodologia ao construir sua dissertação. Vai, portanto, construindo uma forma pedagógica de conduzir a leitura.


No segundo capítulo, estabelece um breve panorama da relação da memória e sociedade, em algumas de suas implicações históricas, filosóficas e artísticas, dialogando com autores como Eclea Bosi (2023), Jacques Le Goff (2013), Maurice Halbwachs (1990). Relaciona esse aspecto a diferentes práticas em contexto urbano, trazendo à tona  experiências de moradores do Bixiga e de cicloativistas de São Paulo. Para mim, esse quadro faz parte do olhar aguçado de José Guilherme. Como comentei em seu exame de qualificação, o imagino em diferentes velocidades e paradas em uma bicicleta, observando, registrando e reinterpretando suas visões, compartilhando-as conosco, para que se produzam outras tantas versões das histórias e que assim elas permaneçam conosco e no mundo.


"A cidade é em si um aglomerado de memórias e protestos, como quando se escreve nos muros o nome de alguma figura morta no contexto de suas lutas, direta ou indiretamente; como os dizeres “Marielle Presente”. Ou críticas a presidentes e outras figuras políticas. Poesias, letras de músicas. Conversas estabelecidas entre quem inscreveu aquilo e quem foi tocado ao ler. Todavia, as perguntas acima fazem menção a outros tipos de intervenção urbana, as corpóreas e orais. Nessa esteira, outro exemplo caro para essa discussão é a luta dos cicloativistas por uma cidade mais sustentável, com menos carros, menos barulho, menos trânsito e, principalmente, mais democrática e que forneça estruturas suficientes para que seja segura independentemente dos meios que se optem (na maior parte das vezes, nem é uma opção) para locomoção.” p. 51

Apresenta um relato sobre o teatro realizado em Goiânia, a partir do que denomina "um exercício de rememoração do teatro surgido na cidade de Goiânia para assim chegar nos objetos/ sujeitos de pesquisa que melhor sintetizam a ideia primordial do trabalho”.

Por fim, contribui com uma reflexão acerca dos trabalhos chamados autoficcionais, que devido a grande profusão na atualidade, tornam bastante significativa a importância de se atentar aos seus processos e procedimentos. 



“[…]a partir das contribuições de Anna Faedrich (2016), Beatriz Sarlo (2007) e de suas interlocuções teóricas, é possível assumir a autoficção como um conceito mais restrito quando introduz passagens notadamente documentais e autobiográficas e se constrói uma narrativa assumidamente ficcional que tece o todo. De modo mais embrionário, como já foi mencionado, chega-se a afirmar que até mesmo a autobiografia pode constituir-se como autoficção, quando moldada para alcançar uma determinada qualidade de escrita e de literatura. Nessas referências citadas, discute-se o vasto universo autobiográfico e autoficcional, principalmente no contexto da escrita literária e do relato — a fim de recontar uma experiência passada como documento para entender e formar a História —, não buscando, no entanto, abarcar a criação dramatúrgica e teatral nessa discussão. "p. 107


Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
como príncipe vivi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
e o bem mais belo é medonho,
pois toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.


A vida é sonho. Calderón de la Barca. Peça do século XVII, considerada das mais importantes da literatura espanhola do Século de Ouro Espanhol e aborda temas filosóficos como o conflito entre livre-arbítrio e destino, além da questão entre a realidade e o sonho.

Desejo portanto que suas perspectivas poéticas sigam frutificando e amadurecendo, e que os sonhos sigam sendo dramaturgizados, poetizados e socializados, para que o poético siga também se efetivando.

Concluo com versos de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos:

Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de Sol

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