Abysmo entre as eus e os outros






Foto de Rafael Mafra



Crítica do espetáculo Abysmo, da Cia Antropofágica, SP, por Simone Carleto Fontes


As palavras seguem ecoando no corpo… “Encontra-se em um abismo, no fundo do abismo, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita vai te salvar. Não ter um tema para o livro, não ter ideia alguma para o livro é se encontrar ou se reencontrar diante de um livro. Uma imensidão vazia. Um livro eventual. Diante de nada.” Sentir a luz dos refletores… quanto tempo! Sentir a efemeridade da cena que te capta e te devolve para você mesmo. Não é sobre se expor, mas sobre a coragem de se despir. Abysmo veio junto de Filoctetes, de Vinícius Torres Machado. 

Fez-se uma intertextuavisualidade, uma interação como se diria antropológica, em cheio à efeméride da perda de um filho. Assuntos para uma cena, temas para um livro e de repente, em sua improvisação, Alessandra, nome de atriz e nome de personagem, Alessandra Queiroz acaba por fazer uma personagem contemporânea, praticamente alegórica da contemporaneidade, até independente do ofício. Uma mulher, que pelos labirintos de um tecimento a partir de vários textos (Agnes Heller, Lícofron, Silvia Federici e Walter Benjamin) e contextos, chega de frente ao Abysmo (Experimento 3.0). Com Roteiro/Dramaturgia de Alessandra Queiroz, que está em cena unipersonal, e Thiago Reis Vasconcelos.

Walter Benjamin relacionou historicidade e memória, enfatizando a importância da memória e da história, especialmente a história dos perdedores, com uma concepção de história que não é linear e progressiva, mas dialética e marcada por rupturas. Esses rasgos abissais estão presentes na narrativa de Alessandra Cassandra. O mito, de origem grega, narra a história de uma princesa troiana que recebeu o dom da profecia do deus Apolo, mas foi amaldiçoada para nunca ter suas previsões acreditadas por ninguém. Essa maldição transformou sua vida em uma tragédia, onde ela via o futuro com clareza, mas era incapaz de impedir os eventos ou ser ouvida. Há profunda semelhança nesse mito com as vidas da totalidade das mulheres, encarnadas como um Atlas nas costas de Alessandra, epicamente atriz e personagem. 

Tão discutidas na atualidade, as questões pós-dramáticas vão se tornando mais palpáveis ao passo que retornam aos palcos situadas politicamente, já que “não há vácuo na política”. O tema das necessidades no experimento passa por Agnes Heller, e por uma liquidificação intensa de elementos aparentemente díspares. Para Heller, a necessidade é um “conceito limite, que define a fronteira existencial” da vida humana. Então, uma necessidade nunca deve ser pensada isoladamente, mas relacionada a uma “estrutura geral das necessidades”, já que o surgimento de certas necessidades depende da satisfação de outras. Portanto, a satisfação das necessidades materiais dá origem ao desenvolvimento de necessidades mais “qualitativas”, como podemos pensar a necessidade de arte, por exemplo. 

Os cenários reveladores dos múltiplos caos são de Flávia Ulhôa e Thiago Reis Vasconcelos, os elegante e funcional figurino de Ruth Melchior e os cortantes desenhos de luz e Iluminação de Renata Adrianna e Zernesto Pessoa. A sonoplastia é bem ao estilo Antropogágico e embala a narrativa ao ponto de indicar a dança, por Gabriela Jeniffer e a produção de Flávia Ulhôa, trazendo uma completude visagística ao feito.




Simone Carleto Fontes é atriz, diretora e artista-pedagoga de teatro. Mestre, doutora e pós-doutora em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Unesp - SP. Professora Formadora e Conteudista do curso de Licenciatura em Teatro a Distância da Universidade Federal da Bahia - UFBA. Jurada de Teatro da APCA - Associação Paulista de Críticos de Artes.





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