Minas das Utopias
Vem de Minas Gerais o grupo de teatro Trupe Qualquer. Com elenco formado por Beatriz Lira, Christiam Concolato, Giovanna Stehling e Jeann Cavallari, a companhia desafia as distâncias, com cada um de seus integrantes residindo em cidades diferentes. Afinadíssimo em interpretação, voz e corpo, o grupo tem direção de Rafael Coutinho. Dessa mina de talentos vem tanta coisa boa, aportando em São Paulo no significativo espaço cultural da Paideia Associação Cultural, sede da Cia Paideia de Teatro. Fomos recebidos por gente da companhia, que estava em peso organizando o local, entre elas João, Giovanna e Aglaia. Aglaia Push, uma das fundadoras do coletivo, nos acolheu compartilhando novidades sobre as participações d’A Paideia, inclusive internacionalmente. Em seguida, se daria essa importante troca com o grupo mineiro. Minas Gerais, território conhecido por suas riquezas materiais e imateriais, do ouro e da cultura, tem nesse e outros grupos um manancial de utopias. De fazeres teatrais únicos, a partir de suas referências e inventividades. Que podem auxiliar a vislumbrar outras infâncias e juventudes possíveis. E outras formas de abordar temas tão caros à contemporaneidade.
O espaço teatral da Paideia Associação Cultural é um verdadeiro primor, com assentos confortáveis, iluminação, um espaço cênico muito agradável, e estava pronto para o início de Café com Leite. O espetáculo infanto-juvenil cabe muito bem aos adultos, tanto que ativou memórias da infância dos presentes, trazendo possibilidades de reflexão acerca dos papéis dos adultos na relação com as crianças, que podem estar relacionados inclusive com suas vivências e de como se enxerga a infância. Tanta profundidade é trazida com ar de brincadeiras de quintal, numa energia própria da criança trazida ao palco pela excelente preparação corporal e com preparação de elenco feita por Vinícius Cristóvão.
A dramaturgia do também diretor Rafael Coutinho, conta a história de Aninha, uma menina contemporânea (com mais tarefas que adultos), que encontra um jeito de fugir das responsabilidades: ser café com leite não só nas brincadeiras, mas em tudo na vida. Porém, ela vai ter que lidar com as consequências de ser café com leite na vida e vai ter que negociar com seu futuro. A Trupe Qualquer busca com o espetáculo abordar Shakespeare (com referências em Macbeth - na escolha de um destino - pelo anúncio de três bruxas), psicanálise (no conceito de mãe suficientemente boa, de Donald Winnicott), viola mineira e rap em teatro autoral, também trazendo como referência as peças de Sylvia Orthof. A busca autorial trata-se de relevante forma de produção frente à indústria comercial de espetáculos infantis. Café com Leite foi concebido em 2019, estreando em 2023, após o período pandêmico.
Um dos pontos altos da montagem é a abordagem musical, com trilha composta originalmente para a peça por Jeann Cavallari, também ator e músico na peça. Aliás, todos os artistas do elenco cantam, dançam, tocam e interpretam com uma coesão e ritmo que causam impacto, assim como a afinação coralística. Uma característica que embala a narrativa, convocando o público a acompanhar ativamente, inclusive nos momentos em que é solicitado que cante junto com o elenco, tomando portanto também uma posição participativa diante da representação da história de Aninha, que se torna alegórica pela sua semelhança à vida de tantas crianças, mas que também dialoga com a forma como os adultos percebem ou não o potencial das crianças em intervir no presente. Essa musicalidade traduz as releituras feitas pelo grupo de suas influências musicais, que na peça representam a harmonia dos timbres e vozes na construção de uma infância e juventude polifônica, na qual cabem todas as diferenças, complementando-se. Violão, sanfona, pandeiro, ritmando a cena com seu pulso a cada momento do espetáculo, criam uma camada sonora imaginativa, fundamental para os climas emocionais, conflitos e desenvolvimento da peça. A obra contou com a operação de som de Fiôra.
As cores vibrantes dos figurinos de André Monteiro, harmonizando e contrastando com a iluminação de Rafael Coutinho, operada por ele, remetem às diversidades de vivências das infâncias. As cores são as mesmas a compor diferentes peças de roupas, atribuindo características singulares a cada intérprete, que fará algumas personagens, exceto Aninha que se mantém na personagem do início ao fim. Os outros três interpretam a mãe, os amigos e as bruxas. A maquiagem e cabelos de Adryana Ryal possibilitam essa versatilidade, com adereços criativos e impactantes, como as capas de chuva customizadas utilizadas para compor as bruxas.
Toda a movimentação dos atores e atrizes do grupo, durante toda a narrativa, proporciona o jogo teatral do elenco, mantendo o frescor improvisacional do espetáculo. A interpretação, portanto, é movida pelo corpo em fluxo composicional, com partituras desempenhadas por todos e cada um. A ocupação do espaço cênico, remetendo à rua, à casa, ao quintal, é construída com adereços funcionais e lúdicos, como a bola e a corda, tão próprios do universo infanto-juvenil. E os deslocamentos formam desenhos de cena que surpreendem. Para tanto, a atenção e prontidão do elenco é perceptível, assim como a atenção à mínima reação do público, ao que incorporam rapidamente à encenação.
O potencial de diálogo de Café com Leite com crianças de todas as idades fica evidente, pelas interações que causam e pela semelhança com os comportamentos relacionais dessa faixa etária e desse público. Assim, a realidade infanto-juvenil é abarcada, constituindo-se em uma oportunidade relevante de comunicação com crianças e jovens, seja em escolas, espaços culturais ou teatros.
Particularmente, o desmaio de Aninha me lembrou o que aconteceu comigo na infância. Tive desmaio em uma aula de balé, e isso marcou não só a infância, mas teria consequências em minha formação. O acúmulo de atividades e de emoções não elaboradas configura-se como um tema fundamental às infâncias na contemporaneidade. Desse modo, Aninha e sua mãe representam dilemas de nosso tempo, das expectativas e realidades no desempenho de papéis familiares. Que bom poder discutir e ressignificar experiências tão densas em um espetáculo teatral de tamanha beleza artística. Aninha precisa decidir como se posicionar na vida, diante da mãe, dos amigos, para conseguir crescer da forma como se sente ela mesma. O desenvolvimento dessa confiança é traduzido pela trupe com uma metáfora poderosa e muito brasileira: eles apresentam a descoberta da "medida do pingado". Ou seja, a possibilidade de cada pessoa descobrir a sua intensidade e sua maneira de viver a vida. Café com Leite se propõe, então, a pensar o desenvolvimento humano com familiares, adultos, crianças e artistas, de forma divertida e atual. Como trajetória, o espetáculo em 2025 completa 4 das 5 regiões do Brasil. Tendo passado por Curitiba, Belo Horizonte, Brasília, São Paulo, São João del Rei, Uberaba, Ponte Nova e Juiz de Fora. Sua repercussão poderá impactar a forma de criar para crianças e jovens, além de inovar na artesania que congrega tradição, raízes, ancestralidade e ressignificação crítica, movendo os afetos culturais para alcançar patamares de referenciais artísticos que reforçam as diversidades presentes e insurgentes fora das capitais.
Simone Carleto Fontes é atriz, diretora e artista-pedagoga de teatro. Mestre, doutora e pós-doutora em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Unesp - SP. Professora Formadora e Conteudista do curso de Licenciatura em Teatro a Distância da Universidade Federal da Bahia - UFBA. Jurada de Teatro da APCA - Associação Paulista de Críticos de Artes.

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