Rei na Rua: o fim justifica os meios


Crítica do espetáculo Rei na Rua, do grupo Bando Golíardis, SP, por Simone Carleto Fontes


Recorrente nas histórias de origem popular, nas quais a função precípua é tornar ridículas figuras de poder, histórias como “A Roupa do Rei”, “O Quadro das Maravilhas”, entre tantas outras, causam a inversão das estruturas sociais e demonstram o poder do povo, sobretudo representado pela classe trabalhadora. No caso do espetáculo “Rei na Rua”, trata-se de releitura da história “A Roupa do Rei”, ou “A Roupa Nova do Rei”. Encontrada em inúmeras versões, como A roupa nova do imperador, O fato novo do imperador, essas e outras histórias foram registradas e publicadas no final do século XIX pelo dinamarquês Hans Christian Andersen.

Em “Rei na Rua”, o elenco do Bando Golíardis, formado por Dani Marin, Marcelo Rôya, Sabrina Motta e Tiago Cintra, adentra a cena trazendo ares medievais, com figurinos criados pela trupe e o Clã das Cores. Remetem à ancestralidade das trupes andarilhas, maltrapilhas, e vêm com figurinos em parte costurados de panos destinados à limpeza doméstica, em tecido de saco alvejado quadriculados.
A abertura de roda característica do teatro de rua é realizada com um aquecimento-jogo com malabares, cuja preparação é de Marcelo Rôya. Na abordagem do grupo, só as pessoas inteligentes poderiam ver o tecido vendido ao rei. “Rei na Rua” encena de forma popular, utilizando a paródia musical, a manipulação de objetos, além dos recursos cômicos da ironia, sarcasmo, hipérboles e humor. Já a encenação, assinada por Marcelo Rôya e Sabrina Motta, busca estabelecer uma paródia com os tempos atuais, como se foram medievais, exacerbando suas possíveis semelhanças. O rei na rua pode se referir tanto ao que acontece ao final, com o rei colocado para fora de seu palácio, como também o fato de a encenação poder ocorrer na rua, possibilitando que transeuntes se acheguem a qualquer momento, compreendendo o que se forma em torno do escárnio à figura apegada ao poder, inebriada pela possibilidade de subjugar o outro.

O conto registrado por Andersen foi inspirado na publicação espanhola Libro de los ejemplos, compêndio medieval com 55 contos morais, remetidos a outros tempos ainda anteriores. No conto original, um rei recebe de tecelões um traje que seria visível apenas a pessoas filhas ditas legítimas. O Século de Ouro Espanhol (Siglo de Oro) foi um período de florescimento cultural na Espanha, que abrange aproximadamente do final do século XV ao século XVII. Ele é marcado por avanços notáveis em diversas áreas, como literatura, teatro, pintura e arquitetura. O teatro espanhol do Século de Ouro atingiu grande popularidade com peças de Lope de Vega, Calderón de la Barca e outros, que desenvolveram gêneros como a comédia de capa e espada e o auto sacramental.

Na peça, são fundamentais a preparação musical de Tiago Cintra e a trilha de Otávio Correia, além da preparação corporal de Dani Marin, dinamizando as cenas e as transformações de personagens bastante exemplares dos princípios do teatro de rua. Toda a peripécia da trupe que aparece na história, buscando sobreviver apesar dos desmandos das autoridades do reino, representadas pelo estado, a polícia e a igreja, lembra o episódio narrado por Robert Darnton, “O Grande Massacre de Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa”, no qual o capítulo dois conta a história do Grande Massacre de Gatos, cujos gatos dos patrões são mortos por trabalhadores, cansados de terem de se alimentar dos restos de comida deixados pelos gatos dos patrões. Assim, as situações de revolta popular tendem a mobilizar ações de contraponto.

Na França, em 1789, com a coalisão da burguesia – com sede de poder – e o povo revoltado em pagar impostos para alimentar a vida exacerbada da nobreza, eclode a Revolução Francesa, exaltando os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Desse processo decorrem prioritariamente os conceitos de cidadania, direitos humanos, liberdades individuais e o direito, evidente, à propriedade privada.
O código civil promulgado por Napoleão Bonaparte, em 1804, garantia as liberdades individuais e o direito à propriedade privada. De acordo com Hobsbawm, a Revolução Francesa forneceu: “[...] os códigos legais de Napoleão, com sua ênfase na liberdade contratual garantida legalmente, seu reconhecimento das letras de câmbio e outros papéis comerciais, e suas disposições em prol das empresas de capital social (como a société anonyme e a commandite, sociedade em que um dos sócios entra com o capital e o outro com o trabalho, adotadas em toda a Europa, exceto na Grã-Bretanha e na Escandinávia) tornaram-se por esta razão os modelos gerais para o mundo. Desse modo, as aproximações com a atualidade e as críticas aos governos necessita de uma contextualização em face da implementação do sistema capitalista em todo o mundo.

As formas populares, como o circo e o teatro de rua mantém-se vivas com a revisitação do Bando Golíardis, consistindo em siginificativa produção na esteira do teatro popular e épico.
Beatriz Rizk, importante pesquisadora latino-americana, trata das influências do teatro épico no teatro novo, na década de 1970. Segundo a autora, o teatro épico recorreu predominantemente à tradição popular, ao teatro da commedia dell’arte, ao teatro elisabetano, o teatro do Século de Ouro Espanhol e o teatro proletkult, influenciado pela Revolução Russa, presente na União Soviética através dos anos 1920 e sua contrapartida, o teatro agitprop na Alemanha. Tanto o teatro épico como o teatro novo desenvolveram formas de teatro de rua, do circo, do vaudeville, que corresponderiam aos chamados ‘jornais vivos’, em que se teatralizavam as notícias quase frescas, dando lugar para a improvisação e para o comentário.

Portanto, estamos diante de provas cabais de que o teatro popular permanece em movimento e vivo, aberto às transformações constantes e necessárias à sociedade.









Simone Carleto Fontes é atriz, diretora e artista-pedagoga de teatro. Mestre, doutora e pós-doutora em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Unesp - SP. Professora Formadora e Conteudista do curso de Licenciatura em Teatro a Distância da Universidade Federal da Bahia - UFBA. Jurada de Teatro da APCA - Associação Paulista de Críticos de Artes.



 

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