Abre a Roda
Foto de Flávio Melo e Tom Ravazoli em cena
Abre a Roda
APONTAMENTOS SOBRE AS COMICIDADES NO TEATRO DE RUA: Expedientes do popular, risível e subversivo
Arguição à defesa de tese apresentada por Flávio Vieira de Melo à banca examinadora do Programa de Pós-graduação em Artes, área de concentração Artes Cênicas, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Artes - Teatro. Linha de Pesquisa: Estética e poéticas cênicas Orientador: Alexandre Mate
Abre a roda tindolêlê
Abre a roda tindolálá
Abre a roda tindolêlê, tindolêlê, tindolálá
https://www.youtube.com/watch?v=uldklx8UB5E
Olha aquela bagunça ali!
Vai, vamo' lá gente!!
Tililingo, Tililingo
Vem cá, vem cá, vem cá
Olha aquele mundarel de gente lá na frente!
Nossa, que bagunça!
Vamo até lá dá uma olhada
Vem, vem! Não me empurra rapaz, não...
Ah saí pra lá (Vem cá, vem cá, vem cá) Deixa eu ir na frente, vem na frente
Me segue, me segue
Hoje tem espetáculo? (Tem, sim senhor) É às oito da noite? (É, sim senhor) Hoje tem marmelada? (Tem, sim senhor) Hoje tem goiabada? (Tem, sim senhor) É dia noite? É de dia? (É, sim senhor)
Aproveita moçada! (Dois e dois não é anda) Sentadinho na bancada? (Pra ver a namorada) E a criança que chora? (É que quer mamar) A mulher que namora? (É que quer casar) E o palhaço que é? (E ladrão de mulher) Mas o palhaço o que é? (E ladrão de mulher) E o palhaço quem foi? (Foi ladrão de boi)
Papai, mamãe venham ver titia
Tomando banho de água fria
Papai, mamãe venham ver vovó
Tomando banho de água só
Papai, mamãe venham ver Loló
Tomando vinho com pão de ló
E a moça na janela? (Tem cara de panela)
E a nega no portão? (Tem cara de carvão)
Hoje tem borobodó? (Tem sim senhor)
E é na casa da vó? (É na sua, é na sua)
Hoje tem arrelia? (Tem sim senhor) É na casa da tia? (É sim senhor)
E é de perna de pau? (É de pau, pau, pau)
Oh raio, oh sol, suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua
Oh raio, oh sol, suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua
Oh raio, oh sol, suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua
E o palhaço o que é? (É ladrão de mulher)
Viva a rapaziada sem ceroulas (Viva!)
Afinal de contas Birulon que cantoria é essa?
Tirulingo essa gente toda tá indo pro circo
Rapaz eu também quero ir pro circo
Tililingo por um acaso você tem dinheiro (Não...)
Então você não quer ir? (Quero sim)
Não quer não...
Você queria, do verbo você é muito pobre
Todo o mundo vai ao circo
Menos eu, menos eu...
Eu sei de um jeito pra gente entrar no circo
Como Birulom?
Cantando!
Eu sou muito bom nesse negócio de cantar
Tá bom, já ouvi!
Tililingo para, para que meu ouvido não é penico!
Ué, eu posso tocar algum instrumento musical
Mas você não entende nada de música
Não fala assim que eu sei tocar campainha muito bem
Sabe nada, você tem é cara de palhaço, pinta de palhaço
Roupa de palhaço, sabe o que você é? (O quê?)
Um palhaço!
Pera aí Birulom...
Se eu sou um palhaço eu posso entrar nesse circo
Como?
Vamo lá! Lá dentro eu te explico
Corre, que o espetáculo vai começar! (Pera, 'pera...)
Senhoras e senhores
Respeitável público
Vocês acabam de entrar no mundo mágico do Circo
Vamos dar início a mais uma função do nosso grandioso espetáculo
Preparem os seus corações
Pois a grande festa do Circo vai começar!
https://open.spotify.com/intl-pt/track/3OuB9Jv28QRyQen8rznnWL?si=O_j-ncbwT36ETVKeXnUYHA&context=spotify:search:circo+parla&nd=1&dlsi=de103a1607a140f6
Como captar e perpetuar essa musicalidade, essa prosódia, a magia e encantamento? Talvez o palhaço possa fazer isso!
A canção teatraliza na primeira parte a chegada do circo, na segunda parte os próprios palhaços estando fora dele, e a terceira a eloquência do espaço espetacularizado. Fui ao disco dos Parlapatões, provocada pelas discussões que Flávio traz ao refletir, junto com Tom, Tiago, Fernando, Luiz, Raquel, Caio, Tom, Alexandre Mate, sobre os teatros de rua, a comicidade, o riso e a subversão.
Depois de ler e reler, depois de ler a preciosidade que são os anexos da tese e que deve ser incorporados com alguma outra nomenclatura, talvez “o que fica fora da lona”, convenço-me de uma das questões cruciais levantadas pela tese de Flávio Vieira de Melo, de que o palhaço é um dos fundamentos, juntamente com manifestações das formas populares de cultura e do teatro político. Esse debate me move de tal modo, que me fez voltar à minha infância, quando comecei a fazer o teatro que parte da universidade negaria e nega. Teatro político, popular, comunitário. Era um grupo de jovens que minha mãe Elisabetta, líder comunitária no movimento Clube de Mães, na década de 1980, organizava no Parque Cecap, um conjunto habitacional com mais de 16mil habitantes, juntamente com a diretora do grupo, a professora Luiza Cordeiro. Eu era criança, e, apesar de saber as falas de todas personagens feitas por jovens e adultos, não tinha idade e tamanho para interpretá-las. E justamente ali eu fazia meu primeiro papel: palhacinha!
Era uma espécie de número de abertura. Enfim, de lá pra cá, fui lendo a tese de Flávio e enxergando minhas-nossas pesquisas do grupo liderado por Alexandre Mate. E vejo com total nitidez a importância da Documentação de Experimentos Teatrais, e, como diz o título da tese de Flávio, de certa subversão das formas do fazer acadêmico que tantas vezes não trazem nada de novo.
De lado oposto, o que temos aqui é a audácia dos teatros de rua rasgando as brechas da academia e trazendo o seu “a que viemos”. Importante salientar como se evidencia a contribuição de estudos da academia em diálogo profícuo com os portadores do conhecimento, digamos assim real, dos teatros de rua, como os grupos Rosa dos Ventos, Trupe Olho da Rua e Nativos Terra Rasgada. As citações de Mário Fernando Bolognesi, o nosso Marinho, são igualmente preciosas e demonstram como é fundamental a aproximação entre pesquisadoras afins, que valorizam sobretudo trabalhadores e trabalhadoras que concretizam, materializam e guardam, socializam suas produções, eternizando-as nos corações, mentes e territórios. De fato, estou convencida dessa argumentação segundo a qual a palhaçada está no cerne dos conhecimentos abarcado pelas linguagens presentes no circo, já que a força motriz do trabalho reside naquelas que o produzem. Igualmente Alexandre Mate é citado pelos grupos, como parceiro das reflexões, do conhecimento sendo construído e tecido nas periferias desse mundão.
Sobre a comicidade tropeira:
"O que nos interessa neste contexto em relação ao trabalho exercido, são as práxis tropeiras, que podem auxiliar para categorização dessa modalidade cômica que, em muito se equivale ao trabalho de deambulantes que outrora passavam meses em lombos de montarias, atravessando estados, carregando e vendendo produtos, sobrevivendo às intempéries, e hoje se encontram reunidas numa modalidade teatral, popular, deambulatória, risível e subversiva qual seja, a comicidade tropeira.” p. 34
"Tropa, portanto, remete a coletividade ao passo que tropeiros seriam as pessoas que trabalhavam na condução de tropas de animais por entre caminhos não demarcados, por entre montanhas, florestas e pastagens (vaqueiros), trabalho de resistência, porosidade, maleabilidade, simplicidade do campo, coletividade e deambulação, características que assemelham-se à comicidade típica do teatro de rua que se estrutura aqui, tomando como referência, além das características já expostas, o fato de serem interioranos e litorâneo do estado de São Paulo, os grupos estudados, praticantes de um teatro deambulante, popular, de resistência, portanto, se nomeia “comicidade tropeira” por analogia terminológica, mas também e sobretudo, por consonância práxica. semelhante aos grupos portadores das manifestações populares" p. 34
"Neste caso, a pesquisa consiste em investigar os procedimentos cômicos que se caracterizam como estruturais nas obras produzidas pelos grupos Rosa dos Ventos, de Presidente Prudente, Trupe Olho da Rua, de Santos e Nativos Terra Rasgada, de Sorocaba, entendendo que suas matrizes cômicas, derivadas do teatro de rua, consistem e, em tese, alicerçam-se, respectivamente, na ordem dos grupos citados, na palhaçada, teatro de matriz mais politizada e culturas decorrentes de distintas proposições populares." p. 35
"Tal perspectiva reforça a necessidade de uma metodologia sensível à reciprocidade entre cena e recepção, especialmente em contextos abertos, não controlados e marcados por fluxos imprevisíveis —
características centrais do teatro de rua. Essa dinâmica entre cena, corpo do conjunto criador da cena e aqueles presentes à apresentação, riso e público constitui o cerne da análise proposta, que busca compreender a comicidade como fenômeno relacional, incorporado e situado.” p. 39
Já sobre o teatro de rua metropolitano, como por exemplo "A análise dos recursos utilizados na abertura da roda ilustra como a interatividade e o improviso são essenciais para gerar experiências cênicas impactantes, além de reafirmar a especificidade do teatro de rua metropolitano, que promove conexões diretas entre a obra teatral e as demandas sociais." p.44 percebo-a como um tanto mais delicada, tendo em vista abarcar cidades que, pelas configurações geopolíticas não se conceituam como metrópoles, ainda que façam parte de regiões metropolitanas. Ainda assim, talvez tomar como referenciais a metrópole em contraponto a interior, ou cidades satélite, não sobrepõe a necessidade de se enaltecer as produções originais e subversivas das formas, sem tomas as capitais como referenciais dessas produções, por suas características singulares e por isso mesmo fundamentais aos necessários abalos das estruturas de poder.
Para finalizar,
Segundo Mikhail Bakhtin (2010), no clássico A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento..., a prática do riso popular, especialmente nas festas de camaval, constituía uma forma especifica de "camavalização do mundo", em perspectiva de desmonte das estruturas sociais, em estado derrisório. Esse fenômeno consistia em uma inversão temporária das normas sociais e das posições de poder, permitindo ao povo rir dos reis, zombar das religiões e satirizar os próprios valores morais da elite. O riso, nessa perspectiva, não era apenas libertador: era criador de sentidos outros, uma forma de linguagem popular que "renovava o mundo ao mesmo tempo em que zombava dele. Como afirma Bakhtin, "[...] o riso carnavalesco é profundamente ambivalente; ele é alegre e ao mesmo tempo escamecedor, afirmativo e destruidor* (Bakhtin, 2010, p. 25).
"Em tal contexto - e de acordo com o que foi apresentado sobre os grupos estudados -, a prática cultural da "abertura de roda" no teatro de rua ilustra mecanismos práxicos dos grupos e artistas que utilizam dos espaços urbanos para criar arenas temporárias de interação social e artística. Ao abrir uma roda, as artistas não apenas envolvem o público em uma experiência compartilhada, mas também territorializam (cujo sentido etimológico concerne a escavar) o espaço, reivindicando seu direito à cidade ao torná-lo um palco de encontro, expressão e diálogo. Essas práxis possibilitam, dentre outras coisas, o compartilhamento de experiências, contribuindo para a compreensão do teatro de rua como um fenômeno cultural que tende a desafiar e a transformar o tecido urbano e social através da arte e da participação ativa da comunidade.” p. 99
Ressalto, portanto a relevância da temática, o pertencimento do autor ao teatro de grupo, a importância da pesquisa para registros e reflexões da tradição cômica e do teatro de grupo na resistência às narrativas dominantes da história do teatro, parabenizando Flávio e Alexandre, pela orientação.

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