Núcleo Pavanelli e Teatro de Rua e Circo: um grupo brasileiro de teatro



 



 


Arguição à defesa de mestrado de DAVI CARLOS TAMARINDO LIMA: PERSPECTIVAS HISTÓRICO-MILITANTES DO NÚCLEO PAVANELLI DE TEATRO DE RUA E CIRCO EM TERRITÓRIOS PAULISTAS, apresentada ao Instituto de Artes da Unesp, com orientação de Alexandre Mate



Estreia do espetáculo Básico do Circo em frente ao Cine-Theatro Central, durante o

Festival Juiz de Fora em Cena, em Minas Gerais (2000). Ao centro, a atriz Rose Cunha; ao saxofone,

Fabiano Assis; à esquerda, Marcos Pavaneli; à direita, Adailton Alves.

Fonte: Acervo Pessoal do Núcleo Pavanelli. p. 33 da dissertação





 

 


[...] Para falar sobre a comédia, primeiro precisamos responder a uma pergunta: o que nos faz rir? Sabemos que algumas imagens enchem as pessoas de pânico. O sangue, por exemplo. Ele é considerado o princípio da vida e a visão, a imagem, desse líquido vital se esvaindo, se perdendo, é algo que nos impressiona dramaticamente. Imagens que possam significar risco de vida, como armas, objetos cortantes ou perfurantes ou possam associar-se com a imagem da morte como esqueletos, putrefação, imobilidade, escuridão, produzem em nós um acentuado desconforto. Da mesma forma, existe outro tipo de imagens que significam vida, prazer ou afastamento da morte. Essas são imagens que nos induzem ao riso. Bem, dizem que a comédia nasce nos ritos de fertilidade e creio que isso é verdade. Imaginem o que uma colheita farta, a visão da abundância de cereais e os depósitos cheios de trigo e de grãos não devem ter enchido de satisfação o homem primitivo. Isso significava o afastamento das agruras da fome e, conseqüentemente, da morte. Está na natureza, que dá ao homem não somente a vida, mas também dá os meios de manutenção dessa mesma vida, o princípio da comédia. Atenção, agora, por favor! Um ator vai entrar com um falo, o órgão sexual masculino, uma imagem muito presente nos antigos ritos de fertilidade. Peço a vocês uma atitude madura, condizente com o caráter científico dessa palestra. (ENTRA UM PERSONAGEM CORCUNDA, TORTO, COM UM CARALHÃO SAINDO DE SUA VIRILHA. O MEMBRO É TÃO GRANDE QUE ALCANÇA O CHÃO ONDE É APOIADO POR DUAS RODINHAS. O HOMEM, COM GRANDE ESFORÇO CARREGA O CARALHÃO. ACADÊMICO VÊ ESTUPEFATO A ENTRADA DO CORCUNDA)

ACADÊMICO: (UM TANTO IRRITADO) Não precisava ser tão grande!

CORCUNDA: O senhor não viu o de papai!

ACADÊMICO: (AO PÚBLICO) Um pouco de seriedade, por favor! Este pênis... 

CORCUNDA: Não é pênis, é saroba. Pênis é o mesmo instrumento só que bem menor. Pênis é a ferramenta de rico, de médico, de padre.[...]"

 (Masteclé, Luís Alberto de Abreu)


Trata-se de trabalho relevante para o cenário da história do teatro brasileiro, por retratar as deambulações do Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo, uma companhia de teatro que preserva não apenas a busca pelas formas do fazer horizontalizadas características do teatro popular, ou seja, as formas coletivo-colaborativas, como permanece com características da transmissão familiar dos conhecimentos envolvendo as práxis do teatro de rua e do circo. Davi traça uma narrativa cuidada, do lugar de onde observa e participa, que é o lugar de um também portador dessa busca dos fazeres do teatro de rua, e das formas populares, movido pelo desejo de investigar com profundidade as interseções entre estética, dramaturgia e militância de esquerda.
Procurando saber das implicações  e transformações pela deambulação de seus fazedores, Marcos e Simone Pavaneli, Rose Cunha, Fabiano Assis, Adailton Alves, Selma Pavaneli, Adriana Afonso, Lucas Branco, Luis Bastos, Heitor Salesse, Sabrina Motta, Anderson Areias, Danilo Caputo, Dany Ivan, Edward Diniz, Francisco Júlio, Harley Nóbrega, Ioneis Lima, Kelly Laser, Lena Silva, Mariana Paudarco, Misael Alves, Paulo Dantas e Romena Procópio, entre outros tantos, Davi registra a aplicação de uma pedagogia popular de formação para o teatro de rua e, também, sistematiza procedimentos de resistência, luta e produção teatral de rua que impactaram a prática teatral do Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo ao longo dos últimos 25 anos. Considera fundamental olhar para a formação política e artística do grupo, os desafios enfrentados em relação às políticas públicas culturais e a percepção da relevância do papel político na realização de um teatro popular engajado, do ponto de vista progressista, e dialógico. A dissertação está estruturada em cinco capítulos: acerca da criação e formação do Núcleo Pavanelli; a ida do Núcleo para Santos (litoral paulista) coordenar a Escola de Circo; participação nas lutas para a conquista das leis de fomento ao teatro na Capital Paulista; a atual formação do coletivo na cidade de Tatuí (interior de São Paulo) e a montagem do espetáculo de rua Aqui Não, Senhor Patrão. Utilizou-se de entrevistas, análise de publicações e observações de campo, com a metodologia qualitativa da história oral.

Com uma escrita delicada, cuidadosa e fluida, Davi mostra atenção aos detalhes e as contradições de todo processo coletivo e público. O material representa uma contribuição importante ao  circo e ao teatro de rua, ao  teatro popular, constituindo-se em uma visão contra-hegemônica da chamada história oficial do teatro. Nomes como Alexandre Mate, orientador da pesquisa, Amir Haddad, Beti Rabetti, Rubens Brito, Calixto de Inhamuns, parceiro recorrente de criação e pesquisas, demonstram a afinação dos propósitos do grupo para com as parcerias realizadas e os percursos trilhados. Calixto tem uma longa trajetória multifunções no teatro e dramaturgia. Ao elaborar reflexões acerca da Dramaturgia no Ato Teatral, tratou das dramaturgias no plural e de como ela se manifesta na direção, encenação e atuação, para além da dramaturgia de texto. E que os processos de colaboração não afastam de modo algum a necessidade de uma escrita de roteiros e textos teatrais. Impossível não associar tais trajetórias relatadas por Davi às descobertas cênicas a partir da pesquisa, estudo, registros e reflexões que acompanham os fazeres. 


Como cita Davi:  “[...]Para Calixto (2025), era essencial que o teatro de rua abordasse temas politicamente relevantes sem se fechar em códigos restritos. A montagem, portanto, politizava o espetáculo sem recorrer a discursos voltados exclusivamente a públicos já iniciados, apostando na comicidade, na música e na fábula como estratégias de aproximação. [...] (p. 62), Como em Aqui Não, Senhor Patrão, espetáculo cuja dramaturgia foi orientada por Calixto de Inhamuns, Simone Pavaneli foi responsável pelo roteiro e desenvolvimento das cenas. A direção e preparação técnica circense foi de Marcos Pavaneli, com assistência de Simone. A trilha sonora foi dirigida por Charles Raszl, e a linguagem do Circo-Teatro contou com a orientação de Fernando Neves, que contribuiu com a construção de máscaras e definição dos tipos cômicos.

Segundo Davi, "Partindo de um pressuposto fábula sobre luta de classes, o espetáculo se afirma como síntese da linguagem construída pelo Núcleo ao longo de sua trajetória: um teatro popular, de rua, de viés épico-dialético, que dialoga com as tradições do teatro político, sobretudo com o legado brechtiano, mas ressignificado a partir dos territórios periféricos paulistas e da experiência concreta dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura.”p. 16)
Vejo ainda uma contribuição fundante para a continuidade da pesquisa e contribuição às formas alternativas de registro e construção da história contra-hegemônica do teatro, as reflexões apresentadas à página 21:


“[...]Além disso, muitos dos sujeitos que compõem esses coletivos trazem consigo uma formação que decorre de práticas advindas de um chão histórico-artístico-cultural, muitas vezes oriundo de experiências familiares ou comunitárias, que reforçam a importância do teatro como ferramenta de expressão e resistência. Essa dupla dimensão – pedagógica e histórica – é central para compreender a dinâmica dos coletivos teatrais, ligados, na atualidade, ao sujeito histórico teatro de grupo, e sua contribuição para o cenário artístico brasileiro.[...]"


Davi entende acertadamente que experiências familiares e comunitárias são

“[...] os processos formativos informais que se desenvolvem no seio de famílias ou comunidades, muitas vezes à margem das instituições oficiais de ensino. São práticas culturais transmitidas oralmente, no convívio cotidiano, por meio de festas populares, tradições religiosas, manifestações folclóricas, rodas de música, saberes do corpo e do território. Essas experiências não apenas formam o artista, mas também moldam sua visão de mundo, sua linguagem estética e seu compromisso político com o lugar de onde fala e atua.[...]”(p. 21).

Na página 60, o pesquisador registra ainda o importante Centro de Pesquisa para o Teatro de Rua Rubens Brito (CPTR), criado em 2007  para a formação continuada de seus integrantes, a extensão para outros artistas, a relação direta com os territórios da cidade e a contribuição para um registro sistematizado do teatro de rua em âmbito nacional.  Rubens Brito atuou em atividades de formação, seminários e debates realizados pelo Núcleo, contribuindo com sua trajetória na interface entre teatro popular, educação e políticas públicas. Sua colaboração integrou o esforço do CPTR em estabelecer diálogos entre a prática teatral e os debates teóricos sobre cidade, cultura e arte pública, sem hierarquizar os diferentes saberes envolvidos.
Para saudar o trabalho de pesquisa, e esse grande caminho do Núcleo Pavanelli em busca do fazer coerente com seu tempo, cito fala da essencial Hermínia Silva: 


“[...] Ser circense contemporâneo quer dizer viver no mesmo tempo, no tempo atual. Ou seja, quando alguém me diz “sou circense contemporâneo”, está querendo dizer que vive no mesmo tempo histórico do Circo Spacial, do Circo Zanni, do Circo do Fuxiquinho (do Rio Grande do Norte), dos artistas do semáforo, das ruas e praças, dos tradicionais que voltaram a se apresentar nas escolas de circo, dos artistas do circo social. Enfim, quer dizer muito ao mesmo tempo em que não explica nada. Em algo os novos artistas do circo não diferem do que havia antes deles: são exatamente iguais aos seus antepassados, são produtores do novo o tempo todo. Ter como característica a contemporaneidade – em sua expressão estética, artística e tecnológica, não é uma novidade, é constitutivo.[...]" (Hermínia Silva, 2011)

Ednaldo Freire e Luís Alberto de Abreu, em prefácio à edição do Comédia Popular Brasileira (1997), reconhecem os caminhos trilhados por Artiano Suassuna, Arthur Azevedo e Martins Pena (p. 19) e dedicam a obra aos fundamentais: “À Renata Pallotini, Lauro César Muniz, Chico de Assis, César Vieira e Carlos Alberto Soffredini que antes de nós trilharam, com talento e arte, a senda da comédia popular. À travessia de Antônio Nóbrega. Aos Parlapatões, Patifes e Paspalhões que navegam a bom vento e com talento, este mesmo mar. (p. 20-21)

Por fim, Amir Haddad defende que

 
“[...] A arte sempre foi — e será - a manifestação de um sentimento de partilha de nossa subjetividade com o mundo à nossa volta. Mesmo quando absolutamente sozinhos criamos alguma coisa, nunca o fazemos para nosso único e próprio uso ou partilha. Ao contrário, tudo que nossa sensibilidade produz tem a finalidade única e primordial de atingir o outro. Mesmo quando na solidão de sua caverna o homem primitivo desenhava um bisão ou uma ave em movimento, ele o fazia na certeza e na esperança de que outro homem igual a ele iria ver sua obra e dela tirar alguma forma de proveito. A arte é produto de nossa imperiosa necessidade de comunicação com o mundo exterior. [...]” (Gasparini e Mendes, p. 123).


Gostaria de agradecer por ter a honra de participar da qualificação e da defesa, o que evidencia a consideração e a parceria. Você não esteve absolutamente sozinho no processo, entretanto sabemos dizer respeito, em termos,  a uma produção criativa mais solitária. Certa de que outras tantas pessoas deverão se beneficiar do conhecimento público produzido, indico a dissertação para publicação.


"[...]ACADÊMICO: Sei que conto com a compreensão de vocês, que não precisaria, mas faço questão de me desculpar pelo que transformaram essa nossa reflexão sobre o universo cômico. Desculpem também minha alteração, mas há dentro de mim uma contradição que não consigo solucionar... Na verdade não era aqui que eu queria estar, fazendo esse papel ridículo... (COM DECISÃO) Querem mesmo saber o que acho da comédia? A comédia não é o inverso, nem o lado negativo e inconseqüente do gênero sério, dramático. A comédia é uma estrutura muito maior, abarca toda uma visão de mundo, toda uma postura perante a vida. Rimos do que está ligado à vida e do que está ligado à morte, rimos em batizados e velórios. O homem sempre celebrou tanto a morte quanto a vida com o riso. A comédia nasceu dos ritos de fertilidade, é filha da natureza e, para a natureza, morte e vida são apenas aspectos de seu eterno movimento. A comédia é corrosiva, destrutiva, fere, às vezes, mortalmente, instituições, conceitos, idéias, personalidades não para que permaneçam mortos, mas para que renasçam renovados. A comédia, como a natureza, destrói para regenerar! [...]"

 (Masteclé, Luís Alberto de Abreu)



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