Os benefícios sociais do riso e da dúvida
Cena de O Circo Bélico. Foto: Henrique Alonso (São Paulo, 2019).
Arguição à defesa de mestrado de Marcela Goellner: ESPANTO CÔMICO: Análise poética e política da peça O Circo Bélico, da Trupe Lona Preta, apresentada ao Instituto de Artes da Unesp, com orientação de Mário Fernando Bolognesi
Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes […]
Agora pego um caminhão
Na lona, vou a nocaute outra vez
Pra sempre fui acorrentado
No seu calcanhar
O mote da lona me trouxe à memória essa canção de Zé Ramalho. repleta de simbologias, me faz pensar no carnaval, nas manifestações populares. Vêm à memória minha própria trajetória, as tentativas frustradas de pesquisa no mestrado, as reflexões tão importantes junto com os mestres, Alexandre Mate, Francisco Alambert, João Palma e, evidente Mário Bolognesi. Quanta gratidão eu sinto. A questão da reflexão sobre as manifestações populares não se tratarem de estética, ligada à estesia, mas fundamentalmente às relações que se estabelecem e que portanto os recursos utilizados da linguagem precisam funcionar, no sentido de efetivar as relações.
Quando assisti o filme O Palhaço, filme brasileiro de 2011, dirigido, co-escrito e estrelado por Selton Mello e Paulo José, fui lembrando de tantos aprendizados desse universo com o nosso querido Marinho. Percebi nos créditos a referência ao seu livro Palhaços, e a emoção sentida no filme se multiplicou, pois os traços de pesquisa aprofundada ficavam evidentes na obra cinematográfica, de forma sensível. E reconhecer a importância do livro na formação da Trupe Lona Preta é igualmente importante. Talvez esse repertório tenha feito total diferença na formação política da Trupe, para além da citação nesse “quesito" acerca das influências das reconhecidas formações, no âmbito político, do Núcleo 13 de Maio.
Eu estava me preparando para essa auguição, e recebi a notícia do falecimento de Ana Maria Quintal, uma das minhas mestras no teatro, com quem desenvolvi uma bela amizade e um vínculo de afeto e gratidão, por termos trabalhado juntas na extinta Escola Viva de Artes Cênicas de Guarulhos. Ela e seus companheiros/as do Arlequins Teatro, foram fundo nessa questão do Capital, de Marx, transformando-o em espetáculo e inclusive apresentaram na ocupação Povo Sem Medo, em Guarulhos. Essas relações entre teatro e política sempre me interessaram, e fico curiosa mesmo sobre as implicações na política que eu chamo de stricto sensu, ou seja, a política partidária, dos movimentos sociais, governos, etc. E perceber agora a existência do trabalho de Marcela Goellner, o seu trabalho Marcela, o seu trabalho, Marinho, é de uma alegria e um prazer imensos.
Destaco a relevância da temática ao abordar o trabalho da importante Trupe Lona Preta e seus artistas, Alexandre Matos, Henrique Alonso, Joel Carozzi, Sérgio Carozzi e Wellington Bernardo. A lida com as questões do riso e da comicidade são muito bem trabalhadas, assim como a questão dos expedientes épicos e as articulações políticas, com destaque para a mobilização dos conceitos acerca das emoções, que aparecem no fim da dissertação, em brilhante conclusão. Um achado igualmente importante ao fazer teatral e registro, transmissão-socialização desse conhecimento teatral, cultural e palhacístico, são as descrições deliciosas das entradas de palhaços, as inspirações em Mário Bolognesi e os registros da tradição e percurso dos palhaços, e as transformações feitas pelos irmãos Joel e Sérgio Carozzi. A pessoa leitora pode visualizar as piadas através das descrições tão bem cuidadas e parcimoniosas. Um prazer e diversão ler esses trechos.
Gostaria então, salientando o modo pelo qual a pesquisa de Marcela e seu partner Marinho frutificou novos conhecimentos, citar o trecho já assinalado como destaque na banca de qualificação: Esse transbordar das estruturas dramatúrgicas transmitidas pela tradição circense para temas que vão além da lona do circo e, ainda, ambientá-lo no contexto urbano e periférico, dentro de uma perspectiva crítica é o movimento e a pesquisa que o Lona Preta começou a fazer. p. 46
O processo de pesquisa, o crescimento e qualidade do material apresentado à defesa descortinam algumas características da atualidade das pesquisas em artes cênicas. Trago um trecho da versão apresentada à qualificação, para cotejo e evidenciação dos saltos de qualidade:
"Mesmo Bergson elegendo a emoção como maior inimiga da comicidade, a intenção aqui é, ao considerar que o riso pode ser a expressão de algum modo de entendimento, articular os encontros entre o teatro dialético e a produção do riso ou comicidade, por considerar correspondências nas experimentações da Trupe Lona Preta, através do encontro da palhaçada e do conteúdo político.”
E a versão de agora, na página 134
“Atualmente ainda nos deparamos com leituras sobre as elaborações do dramaturgo que afirmam que Brecht negava as emoções e o divertimento, separando-os da produção da atitude crítica. A associação do teatro político como coisa séria e a desqualificação do cômico, da sátira, do teatro revista é perceptível na historiografia do teatro brasileiro. Segundo Iná Camargo “isso é tudo conversa do inimigo. O que Brecht não aceita é a produção de estímulos para emoções baratas, gastas e sem o menor sentido, isso a vida inteira ele criticou. Agora, ele não é contra as emoções ele quer emoções novas” (Costa, 2016)77. A separação entre sensível e inteligível ou entre coração e mente, é a base da concepção que separa o riso da emoção, tornando “inconciliável o rir e o sentir” (Mendes, 2009, p. 21), como faz Bergson, ao eleger a emoção a maior inimiga do efeito cômico. Para ele “a insensibilidade seria um ‘sintoma’ que acompanharia o riso ‘naturalmente’” (Bergson, 1987, p. 12), assim como teorias que insistem em afastar o componente das emoções nas explicações do efeito catártico na comédia. Cleise Mendes discorda do argumento pois, para a autora, o processo catártico “não se reduz nem à experiência puramente emocional, nem à aprendizagem apenas lógico-racional, mas a catarse conecta a produção e a recepção da obra, mobilizando o repertório afetivo e intelectual do espectador” (Mendes, 2009, p. 21).
Ainda no final, Marcela nos provoca a pensar "se produzimos alguma dúvida durante a leitura, fomos bem sucedidos." p. 141
De fato, fica uma dúvida a partilhar com a leitura da dissertação. Ao olharmos para as inflexões da formação política proporcionada por Luís Carlos Scapi e o Núcleo de Educação Popular 13 de Maio, e reconhecer a contribuição inequívoca ao movimento de teatro de grupo de São Paulo, fica também uma “pulga atrás da orelha” se a diretriz "Três falas, uma piada” (Sérgio Carozzi, 2024) não cumpre a função tão almejada de “dialogar com as massas”. Tratamos em diálogo na qualificação sobre as faces atuais do capitalismo e a precarização das formas de trabalho, assim como a característica multifacetada das correspondências materiais de hoje, considerando a conjuntura geopolítico-econômica internacional. A ênfase da temática da conciliação de classes se conecta profundamente com as possibilidades de reversão do quadro nomeado por Jessé Souza como o fenômeno “pobres de direita”. Portanto a diversificação nas formas de abordar tais perspectivas críticas é fundamental ao teatro, função plenamente cumprida pela Trupe Lona Preta ao encontrar seu público. Fica a dúvida se os enfrentamentos estabelecidos em reflexões de parte da esquerda brasileira, como as citações de Daniel Lage, colaboram aos necessários movimentos organizativos para enfrentar os processos reacionários que estamos sofrendo em todo o mundo.
Estou certa, por hora, que o trabalho de Gollner, orientada por Bolognesi, cumpre seu papel na academia, no Instituto de Artes da Unesp, no país, e nutro o forte desejo de vê-lo publicado, exaltando as formas populares, que sejam reconhecidas como conhecimento transformador, inovador, subversivo e potencialmente politizante, estando seus produtores, portadores, artistas do lado certo da história. Evoé!

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